quinta-feira, setembro 03, 2009

Pelas lentes da literatura


Por Mendes Junior

De nada adiantava tentar entender. As ladeiras evocavam suas lembranças de quando vivia em Belo Horizonte na companhia de magos da literatura. Não gosto da palavra mago – lembra-me Paulo. Ela nos disse que fazia sempre um frio gostoso e preguiçoso; mesmo no verão o tempo era criterioso com todos; complacente, eis a verdade e o que queria realmente expressar. Tudo passava muito rápido, pensou Joselane com uma maçã na boca e a respiração ofegante de quem ainda não largara o vício do cigarro. Rodaríamos um curta-metragem para um concurso cinematográfico a ocorrer dali dois meses em Roliúde, no sertão nordestino. Joselane foi eleita diretora simplesmente por ter conseguido arrecadar a maior parte da verba para a realização do projeto, fato este que deixou enciumado um cubano – que até então não tinha visto mais magro, chamado Alberto –, que acabou responsável pela fotografia, embora fosse bastante aplaudido como roteirista. A bem da verdade, Joselane queria ser escritora e, assim como o farmacêutico que não consegue ser médico por incompetência, acabou terminando um curso relâmpago de cinema e abandonando as letras. Muitos aprovaram a segunda decisão. Esse era seu primeiro trabalho com a câmera e nos dissera em muitas reuniões que iria introduzir na história toda a tão sonhada verve literária, e mais ainda: os ensinamentos dos tais magos da literatura. Mas qual história? – quis saber o alemão responsável pela maquiagem, por meio de um português atravessado. – Silêncio! – foi sua resposta sem sombra. Imaginei, não obstante estarmos in loco, o nó cego dado na cabeça do casal de atores, bem como da figurinista, que nada tinha de concreto senão o desejo de ir embora com o seu mau hálito. Havia uma outra particularidade: Joselane adorava o preto e o branco, portanto, nada de cores. As vozes ainda deveriam ser discretas, inteligentes, engraçadas e sarcásticas, e não era oportuno qualquer diálogo, ou seja, o curta estava fadado ao público cult, o que representava, desde já, que todo o esforço despendido pela equipe e a dinheirama gasta não seriam de forma alguma recompensados. Qual o sentido da trabalheira? – indaguei, pensando se tratar de uma boa pergunta, mas logo vi a face de Joselane ficar encarnada de raiva e senti medo. Também preferia não ter permanecido para escutar a resposta: “O cinema nacional! Nós somos responsáveis pelo cinema nacional!” – respondeu, acendendo outro cigarro. Particularmente, não me sentia responsável por bulhufas, ao contrário, era tão-somente o iluminador, de nome Michel, que passaria um tempão segurando uma droga de barra de ferro. Joselane – vim saber muito depois – era mineira nascida da união de um austríaco fugitivo político com uma mexicana suada e fedorenta, e somente o escrivão de Congonhas sabia o porquê do nome Joselane. Éramos onze indivíduos no alto de uma colina “marrom” tentando cavar um orifício nas idéias de uma mulher incompreensível, doida de pedra, a fim de transformar aquela loucura num filme, não para concorrer devidamente a um prêmio – isto já sabíamos –, mas para realizar quem sabe sua orgia pessoal. Éramos seus fantoches e, em assim sendo, nos sentíamos órfãos e cada vez menos seguros. Mas alguém resolveu, acertadamente, colocar a direção na parede de fuzilamento, pois somente desta maneira sairíamos incólumes daquela aventura ficcional. – Então, afinal, qual o teor da história? – questionou o franzino ator, que não tinha estereótipo de galã. – A saída para o cinema está imersa na literatura e é assim que se costura a própria vida: na literatura. Os magos ensinam que apenas as palavras podem salvar o mundo do desterro que ora assola a todos – falou compassadamente Joselane, que pediu para que o casal de atores retirasse suas vestes. – O quê? A fala de Joselane atingiu em cheio a mocinha que faria par com o rapaz franzino. – Sim! Nus e juntos vocês irão recitar poemas de Baudelaire e salvar o cinema nacional. Vejam a oportunidade. Vamos à primeira tomada. Façam de conta que isto é um altar e se atirem aos pés da poesia.

Mendes Júnior, cearense, é contista, cronista e, nas horas vagas, advogado. Publicou O engraxate e outros suicidas (Expressão Gráfica).


Mendes Junior é também meu querido irmão!


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