quinta-feira, março 01, 2007

A cidade dos paradoxos


"Bombaim é um lugar no qual é fácil morrer.


Mas não é possível nem por um segundo, nesta cidade de constante pulsação que assalta os sentidos, esquecer que estamos vivos. A revista Time, por exemplo, disse que "para descobrir a nova Índia, com suas promessas estonteantes e ambição turbinada, o certo é visitar sua cidade mais sexy e mais tumultuada Bombaim".


Bombaim, ou Mumbai, como ela é agora oficialmente conhecida, decerto merece o apelido de Cidade Máxima. É um lugar avançado, adepto da moda e ambicioso por superlativos, mais ou menos como Xangai, sua contraparte chinesa uma comparação que parece agradar aos políticos indianos. A cidade abriga a mais antiga bolsa de valores do país, seus mais importantes bancos, os mais ricos magnatas dos negócios, as mais belas estrelas de cinema e os bandidos mais temidos.


Bombaim gera mais de um terço do total de impostos arrecadado pelo governo nacional, e abriga também vastas somas em riqueza ilegalmente obtida. A cidade recebe 40% dos vôos internacionais destinados à Índia, e hoje sua população supera os 18 milhões de habitantes. De acordo com uma estimativa das Nações Unidas, ela será a segunda cidade mais populosa do mundo em 2015, atrás apenas de Tóquio, e terá mais habitantes do que a Austrália ou a Escandinávia inteira.


Bombaim quer dizer Bollywood, onde centenas de filmes são produzidos a cada anos, com números musicais ostentando canções sentimentais e chuva de estúdio que faz com que os saris se colem aos corpos voluptuosos das atrizes. Em termos de volume bruto de produção, Bollywood supera em muito Hollywood. Os aluguéis nos bairros mais procurados da cidade superam os de Munique, Nova York ou Londres. Restaurantes de classe mundial servem interpretações indianas da haute cuisine, incluindo pratos como lagostas ao molho de azeitonas, acompanhadas por arroz com curry.


Os empresários mais poderosos muitas vezes chegam às reuniões de negócios conduzidas nos principais restaurantes e hotéis da cidade dirigindo seus Lamborghinis. Da sede de suas empresas em Bombaim, líderes bilionários da indústria tais como Ratan Tata (siderurgia e automóveis), Mukesh Ambani (petróleo e petroquímicos) e Adi Godrej (bens de consumo) se tornaram forças mundiais, embarcando em ondas de aquisições internacionais que envolveram até mesmo grandes empresas européias que se enquadravam aos seus planos de negócios. A revista financeira "India Today" chegou a descrever as recentes aquisições de companhias britânicas por grupos sediados em Bombaim como "colonização em reverso".


Mas Bombaim também ostenta a dúbia distinção de abrigar as maiores favelas e cortiços da Ásia, os quais abrigam, segundo estatísticas do governo, 60% de seus moradores. Em 2003, o número de sanitários públicos por milhão de pessoas chegava a 17, e até hoje um terço dos moradores da cidade estão desprovidos de acesso a serviços de água e esgoto.


As legiões de pobres da cidade vêm crescendo a cada dia, à medida que milhares de moradores das regiões rurais migram para a cidade grande, onde dormem nas calçadas enquanto esperam por uma vida melhor nesse porto da esperança. Eles enviam suas crianças famintas a locais estratégicos, designados pelo Clube dos Mendigos, uma organização que cuida das necessidades dos mendigos locais, e as forçam a ganhar a vida como pedintes. Alguns dos melhores locais, segundo o clube, são as dezenas de clínicas de emagrecimento ou consultórios de cirurgiões plásticos procurados pelos ricos para lipoaspirações, o que talvez os leve a sentir um pouco de culpa e a dar algumas rúpias de esmola.


Bombaim incorpora o futuro da civilização urbana mundial, escreve Suketu Mehta, que se criou em Bombaim, se mudou para Nova York e agora está de volta à sua cidade de origem. "Deus está conosco", ele afirma.


Muitas criaturas ¿sapos, por exemplo- recebem proteção especial na cidade. Influenciada por uma campanha da organização ecológica "Beleza sem crueldade", a prefeitura proibiu por algum tempo a exportação de pernas de rãs. De acordo com a organização, a morte das rãs é dolorosa, e o banho químico que supostamente as mata de forma indolor enquanto suas pernas são cortadas é tão ineficiente que os torsos dos animais se contorcem por longos minutos depois da suposta morte. Só quando os abatedouros concordaram, pelo menos teoricamente, em usar injeções para desativar o sistema nervoso central das rãs, antes do abate, o lucrativo comércio voltou a ser autorizado.


Para os praticantes do hinduísmo, vacas são sagradas. Se uma vaca decidir percorrer uma das movimentadas ruas da cidade, os motoristas simplesmente se desviam, cuidando para não ferir o animal. Os muçulmanos, de sua parte, estão proibidos de tocar em porcos. Os jains, cuja doutrina proíbe que se cause sofrimento a qualquer criatura viva, incluindo minhocas, usam as mãos, e não ferramentas, para colher batatas. Os parsis, que cultuam o profeta Zoroastro, dependem de abutres para eliminar os restos mortais dos membros do culto em suas chamadas "torres do silêncio". Há leis que regulamentam o espaço mínimo necessário a transportar mulas, búfalos e cabritos em vagões de trem, e as violações são passíveis de punição sob o código disciplinar da ferrovia estatal. De fato, Bombaim parece oferecer proteção a todas as espécies de criaturas, exceto uma: os seres humanos.


Ao longo dos séculos, muitos observadores criticaram ou atacaram a beleza de Bombaim. Poucos a amaram, e um número ainda menor de pessoas deixaram suas marcas na cidade. Os pescadores Koli batizaram sua modesta colônia na costa então infestada por malária em honra do deus hindu Mumbai, e os nacionalistas hindus agora decidiram restaurar o nome original da cidade.


Já os portugueses chamavam a cidade de "Boa Baía", e ela foi transformada em parte do dote da princesa Catarina de Bragança, no século 17. Quando seu marido, o rei Carlos 2°, da Inglaterra, perguntou à mulher sobre o lugar, ela respondeu que "provavelmente fica no Brasil"."


Texto de: Erich Follath do Der Spiegel
Tradução: Paulo Eduardo Migliacci ME
Fonte: Terra

Nenhum comentário: