Não lia bem, porém entendia que na leitura havia algo relacionado com a noite e, portanto, usava para justificar as noites mal dormidas. Não se permitia devaneios, mas tão-somente um realismo nu e cru de uma cidade sem rei. Nas horas mortas, entre meretrizes e desvalidos, deparava-se hermeticamente com o braço esquerdo da existência puxando-lhe por vielas escuras, levando-lhe aos bares mais sórdidos. Bebia muito conhaque e sempre de maneira sôfrega, como se sentisse nojo de qualquer coisa, como se repudiasse aquilo que estivesse ao alcance dos olhos, mas sua proximidade com as mentiras era mais uma natureza da entrega do seu corpo e alma, nada enobrecida. Gole, gole, gole...
Vociferava contra as formas de poder utilizadas pelo homem em seu benefício, embora não fosse tão claro, mas não era um anarquista nem coisa parecida. “Caro colega, em Pinhais do Frade, o vilarejo em que nasci, a gente vivia feliz” – remoia um passado velhaco e de pouco para comer, tentando contar causos esquecidos nos farelos das estações para o primeiro desacreditado. Não era habituado do trabalho: nunca achou que as gotas de suor valessem mais do que esforço mal recompensado. Gostava mesmo era de televisão: assistia à programação que lhe caía nas vistas: novelas, programas de auditório, reclames, tudo, embora não gravasse a essência das coisas e, em poucos minutos, um vazio intrigante pinicava sua cabeça feito piolho. Em meio à escuridão, divertia-se com as estrelas: “Umas até caem do céu”.
Aliás, o céu era o lugar em que pretendia estar no futuro próximo, já que nessa encarnação só lhe restava aguardar uma outra vida, pois doravante nada mais havia. Para qualquer inferno que fosse, de imediato, procurava garantir o pedaço mais sossegado, quiçá o que fosse possível se fingir de morto. Admirava as estrelas por não conhecer o dia de olhos abertos – durante a manhã, sono, na tarde, cura, à noite, zona (perfazendo-se, desta forma, um ciclo vicioso). Tinha amigos: bêbados, taxistas, mulheres, travestis, milicianos e garçons. Não tinha esposa nem filhos, pois, tal como Brás Cubas, não iria deixar esse triste legado para quem quer que fosse. Não que tenha se debruçado na história de Machado de Assis, mas, assim como aquele, sofrera de uma enfermidade – doença para lá de exótica, porém doença: Merencefalia Ociolítica Progressiva. Era uma espécie de enfermidade degenerativa trazida pelos próprios portugueses, por ocasião da colonização, causada pelo ócio profundo. Destruía, em primeiro lugar, o poder de ação e reação e, em pouco tempo, os neurônios, levando o ser humano do estado letargo à morte. Aos 45 anos, não lembrava nem o nome. A doença agravou-se. Até que, numa bela manhã, foi surpreendido pela navalha de um cobrador – um acerto de contas pelo tempo perdido.
Moral da história, segundo Millôr Fernandes: “Quem mata o tempo não é assassino: é suicida”.
Mendes Júnior
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