terça-feira, outubro 23, 2007

Minha casa sou eu


Caminhava a passos largos, era hora de recitar um poeminha bobo que escrevi no alpendre da fazenda. Não era sítio, mas fazenda, pois, como disse certa vez o poeta maldito José Alcides Pinto, fazenda seca enquanto no sítio tudo é meio verde ainda. Para escrever o poema... Com sua licença: se eu digo que o poeminha é bobo, será que a norma culta considerará redundância a junção do diminutivo com o adjetivo de baixa índole? Antes contava (ou queria contar) que para escrever o tal poema fiz uso de uma plaina imaginária para alisar os versos deveras rústicos e das pedras das lavadeiras do Rio Acaraú para bater bem as palavras e retirar toda a sujeira ou, como queria Graciliano Ramos, os excessos do texto. Foi por volta da hora do almoço, chovia e, finalmente, meu pai estava em casa, fato este que diminuía minha aflição e mascarava a saudade que eu sentia de quando criança, os potes de doce de leite, as grossas fatias de queijo coalho e as viagens de carro (sempre) às sete da noite. A vida pode de nada valer, desde que se tenha na lembrança uma infância tenra e prazenteira, e era justamente isto que havia acontecido a mim, dentro e fora do sonho. E, para tanto, tenho que discordar da delicada medicina quando me diz que aquele era um outro eu e que, de agora em diante, devo focalizar apenas este eu, como se não houvesse qualquer semelhança entre os dois ou como se um não fosse reflexo condicionado do outro. Ora, vejam só, sempre me pareceu um absurdo idealizar o presente sob tal ótica, além de um esforço desnecessário e, aproveitando o prefixo, totalmente desgastante. Minha casa são todas em que já pisei um dia – como diferenciá-las? E era sobre isto que se atinha meu poeminha bobo: influenciado por Manuel Bandeira, era um soneto que leria nas comemorações da padroeira e que falava da meninice, da vontade de nunca crescer, mas que também enaltecia as boas e péssimas experiências vividas nas mãos alheias e nos sorrisos falsos e a permanente covardia diante da nossa morte. Sim, nossa, pois ela, múltipla e pública, é inevitável, como agora interrompendo a leitura do meu poeminha sem graça. Qual a graça, então? Engraçada é sem dúvida a morte, pois quem senão ela teria a capacidade de irromper de entre nuvens cinzentas, em meio aos meus passos abundantes, transformando-lhes em miúdos contornos alijados às águas do pobre rio de minha casa. Minha casa! Está escutando, doutor? Minha casa! Tudo é minha casa! A vida é minha casa! Eu sou minha casa! E como o piso da casa está marcado!, há uma sombra no tapete que teima em não sair. Passa sabão, passa sabão, passa sabão, passa sabão... Lembra daquele esforço desnecessário e desgastante? Pois bem, ei-lo à nossa frente: nunca conseguiremos apagar a sombra desenhada no triste chão da casa. Agora, já não subia no tablado para recitar coisa alguma, mas para representar um novo eu – uma ilusão tão-somente da figura que passeia os olhos pela platéia dispersa, fazendo piruetas, cambalhotas e várias outras firulas não tão divertidas quanto às piadas da morte. Enquanto isto, o palhaço se desata em choro, tropeçando nos próprios passos.


Mendes Júnior

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