terça-feira, abril 29, 2008

O que sente um passageiro do Caveirão, ao ser colocado lá dentro?



DENTRO DO CAVEIRÃO

CRISTINA TARDÁGUILA

Revista Piauí


Ao ser aberta, a porta do blindado que a Polícia Civil do Rio de Janeiro usa para circular nas favelas cariocas emite um estalo seco, seguido de um rangido rouco. O ar que escapa de dentro do veículo, uma mistura de suor, pólvora e sangue coagulado, revira o estômago, de tão quente e úmido. O policial Hamilton não se abala com o mau cheiro. “Com o tempo, isso aqui vira a sua casa e você nem percebe”, disse ele, numa madrugada recente, ao entrar no Caveirão, o apelido do blindado.

De botas militares, calça cargo e camiseta preta, com o focinho de um jaguar estampado em branco no peito, ele pediu para que o seu sobrenome não fosse divulgado. Antes de mostrar o Caveirão por dentro, Hamilton tirou das costas um fuzil M-16 e se certificou de que a pistola 9 milímetros estava bem atada à perna direita. Nascido em Madureira, Hamilton é investigador da Polícia Civil e há cinco anos trabalha na Coordenadoria de Recursos Especiais, a Core. Em plantões de 24 por 72 horas, o cinqüentão de estatura média, cabelos grisalhos cortados curto e barba espessa cumpre uma função-chave na polícia: é motorista de Caveirão.

Por dentro, a caixa preta de 3 metros de altura por mais de 5 de comprimento se revela mais compacta do que o esperado. Diante de um painel parecido com o de um carro comum, há dois bancos de couro sintético e a caixa de marchas. No teto, um rádio transmissor novo, com inúmeros botõezinhos, chama a atenção. “É a herança do Pan”, explicou Hamilton. Entre as duas portas laterais, um vão amplo e alto permite que policiais fiquem de pé sem tocar o teto. É a torre de tiro, de onde, através de pequenas aberturas, se pode disparar para todos os lados. No fundo, perpendicular à porta traseira, um banco de assento curto, afixado no centro, tem oito lugares, quatro virados para a esquerda e os outros para a direita. O chão é recoberto por uma chapa metálica antiderrapante, e as paredes dispõem de mais de vinte buracos para que os policiais coloquem o cano de suas armas para fora e atirem. As janelas são pequenos retângulos com vidro à prova de balas. O pára-brisa leva a proteção de uma chapa de aço que, além de reduzir em mais de 90% o campo de visão do motorista, diminui pela metade a luminosidade no carro. Escuro e sem ar circulante, o espaço é claustrofóbico.

Hamilton abriu o capô, levantou a chapa que protege o motor e constatou com uma vareta que o óleo do motor estava o.k. Com o polegar, conferiu o nível de água no radiador e, satisfeito, tornou a travar a tampa. Acomodou-se no banco do motorista, girou a chave e pisou no acelerador. As luzes internas piscaram e o ranger do motor transformou a conversa em gritaria. O radiotransmissor foi conectado e no painel um ponteiro indicou que o tanque estava cheio.

A vistoria que Hamilton criou por conta própria para se certificar de que pode sair a campo terminou com uma volta em torno do Caveirão. Percebeu um problema: o pneu traseiro, do lado direito, estava murcho. “Quando o carro fica muitas horas parado, o gel que garante a blindagem se acomoda, e deixa o pneu desse jeito aí, baixo”, resmungou, arremessando longe a guimba do terceiro cigarro do dia.

Às seis da manhã, onze policiais com coletes à prova de bala, fuzis e pistolas emergiram da escuridão e entraram no blindado. Uma vez lá dentro, alguns ofegavam e todos transpiravam. No rádio do Caveirão, Hamilton disse: “Bom dia, companheiro. Dando início à missão 380.”

O Caveirão saiu para a rua, à frente de quatro veículos policiais sem blindagem. A sirene não respondeu ao comando de Hamilton, e ele deixou que um dos carros menores passasse à frente. No primeiro sinal vermelho, o Caveirão brecou e o carro que vinha logo atrás se surpreendeu. Além do pneu baixo e da falta de sirene, o motorista percebeu que o Caveirão estava com um problema nas luzes de freio. A do lado esquerdo queimara.

A entrada em operação do primeiro Caveirão – cujo nome oficial é Veí-culo Blindado de Transporte de Pessoal, VBTP –, em 2002, serviu de marco para o novo patamar da repressão policial nos bairros pobres do Rio. Desde então, a criminalidade no estado só fez aumentar. Segundo a Secretaria de Segurança, entre janeiro e novembro do ano passado houve 290 mil furtos e roubos, e 1 250 mortes em confronto com a polícia. Aumentou também o número de VBTPs. Há hoje uma dúzia deles na cidade, dez da Polícia Militar e dois da Civil. Concebidos no governo de Anthony Garotinho, os Caveirões seriam produto de três fatores. Primeiro, a configuração geográfica e social das favelas, com escarpas e vielas estreitas. Superpovoados e de difícil acesso, os morros facilitam o ataque a policiais e a fuga de criminosos. O segundo é o poder de fogo dos traficantes, que dispõem de armamento pesado, capaz de impedir a circulação das forças da ordem. Por fim, há a existência de grupos organizados de criminosos, um deles com mais de trinta anos de vida – o Comando Vermelho –, que controlam significativas parcelas das áreas pobres.

Os antecessores dos Caveirões foram os Paladinos e Brucutus, usados pelo Batalhão de Choque da PM nas manifestações populares e estudantis dos anos 60. Destinados a dispersar passeatas, eles avançavam sobre a multidão e disparavam jatos d’água. O Caveirão, por sua vez, permite que se atire de dentro do veículo, mas seu objetivo é levar policiais até o ponto de confronto de forma rápida e segura. Também abre passagem para companheiros a pé ou sem blindagem, e garante a retaguarda do resto da tropa.

Sentado à mesa mais discreta de um restaurante do centro do Rio, Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais da PM, Bope.


Leia o texto completo aqui

Nenhum comentário: