VIDA DE VIRIATO
Mendes Júnior
Freqüentava o Real Gabinete Português de Leitura há quatro anos, desde que fui morar no Rio de Janeiro, numa pensão miquelina de Botafogo. Ir todos os dias, no entanto, não importava ser conhecido. Meu medo me causava receio. Certamente, um deslize que me acompanhou desde Crime e Castigo. Confesso que, - não sem vergonha -, um troço esquisito e inexplicável me quedou ao anonimato. Não sei o porquê de ter dito isso ao médico, como se se relacionasse com a gordura que me obstruía a veia. O tenebroso acesso do coração se deu quando lia Lírica de João Mínimo, de Garret, na biblioteca. Descobriram-me com a cabeça e os braços estirados na escrivaninha. Fiquei assim por segundos. Voltei da vertigem a partir de uma voz de barítono rouco. "O mundo está desumano demais", soltei mais esta ao médico. É que na confusão reclamaram do rumor, uma moça queria paz, caso contrário, iria ler na feira que montava banca perto dali. "Pois que fosse pro diabo!", murmurei. A Coordenadora de Cultura estava inquieta pela mesa de inestimável valor; não se propôs a debulhar meu fastio. Tentei aclarar que não foi intencional: "O coração, senhora!" Não adiantou; enfezada, chamou-me de insano. A ambulância tardou em virtude do trânsito. "Estava na biblioteca. Na próxima, escolherei o local para uma ruinzeira, como se não fosse premente, hein, doutor!", falei sarcástico, acomodado no corredor do hospital. Doutor Emo, (li na placa colada à gola do jaleco), tinha o rosto amassado e amarelo. Uma enfermeira fardola se aproximou. Nome? Viriato. Profissão? Escritor. (Notei um ar de superioridade). Estalou a língua e saiu; não carecia de mais saber. "E há melhor companhia do que os livros quando se adoece?", perguntei ao doutor, que uma vez mais não correspondeu como eu desejava; considerava a leitura um grandessíssimo desrumar de vida e um desaprumo de cabeça. O mais triste é que morri. É terrível ter a perfeita noção da sua morte. Avisaram-me que era interino, até as arestas estarem aparadas. A ausência delas agravou meu estado, afinal um homem não pode fenecer limpo. E lá fui explicar que não cometera erros, (não roubara nem matara), enfim, nada que depreciasse a alma. Não era este o desejo? "Viriato, você foi um covarde!", bradaram. O maior de todos os crimes: a covardia diante da vida. Lembro do caixão largo; era viciado em comida, mas a gula perdera seu posto no Livro dos Pecados para a bulimia. O féretro não era de madeira tão nobre quanto da escrivaninha. Como o reconhecimento não me ocorreu nem na morte, além dos vermes, o cupim tomará conta para que coisa alguma resista do que acabo de escrever donde estou, assim como de toda minha literatura.
Conto produzido especialmente para o Caderno Vida&Arte, do Jornal O POVO, publicado na edição virtual do último domingo (15/06/2008).
Fonte: http://www.opovo.com.br/conteudoextra/796723.html
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